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Ecologia da resistência: experiências pedagógicas da Escola Vila

Observamos com atenção o mundo globalizado e globalizante, com sua ideologia própria que penetra as estruturas sociais, pasteurizando as diversas culturas e tradições dos países que atinge, normatizando valores fundamentais de suas sociedades, homogeneizando a linguagem e a conduta dos indivíduos. Cada vez mais, a economia revela-se a força que direciona as instituições sociais. No caso da instituição escolar convencional, propagam-se nela e através dela códigos sociais que retroalimentam o automatismo das sociedades com foco no mercado.

Características como o currículo disciplinar fragmentado e descontextualizado, a organização dos alunos em espaços de confinamento, a formação de  professores também fragmentada e descontextualizada, a pressão por resultados não somente em cima dos alunos, mas também dos professores, entre muitos outros aspectos, tendem a potencializar o caráter utilitarista da escola, que exige assumir como foco principal a formação de indivíduos atomizados e voltados a cumprir metas e prazos.

Mais do que transmitir qualquer conteúdo disciplinar, essa escola ensina um modo de operar no meio, isto é, perpetua os códigos estruturais da nossa sociedade moderna fragmentada e fragmentadora.

Usualmente, habilidades como autonomia de pensamento e criticidade, criatividade e convivência na diversidade não são desenvolvidas na escola. Ao contrário, as estruturas curriculares, a arquitetura das salas de aula e da escola como um todo, os objetivos e métodos de avaliação e a própria rotina escolar incorporada como um hábito compartilhado por todos são características-padrão da escola convencional que restringem o desenvolvimento daquelas habilidades.

Atitudes como subordinação à autoridade, conformismo, competição, discriminação, consumismo e a disposição de explorar o semelhante e utilizar os recursos naturais de forma imprudente costumam ser ensinadas na escola. A efetividade desse aprendizado é, curiosamente, muito maior que a de conteúdos disciplinares. No âmbito coletivo, indivíduos “letrados” dessa forma compõem uma sociedade voltada para a competição, a exploração e o consumismo, para a discriminação e estratificação social. Nesse contexto, a fragmentação das disciplinas priva o indivíduo do desenvolvimento de uma visão sistêmica e relacional – que lhe permitiria enxergar o todo sem deixar de ver cada parte que o integra, que o habilitaria para o convívio social pleno – e prima por sua atomização. O indivíduo não percebe a interdependência inerente à condição humana, tanto biológica quanto cultural.

Com isso, alimenta-se a desconfiança nas relações sociais, a competição e a vigilância do outro, abrindo ainda mais espaço para critérios de valoração estranhos à própria cultura. Assim, o que numa comunidade tradicional era compartilhado por todos os membros passa a ser deixado de lado em prol de critérios de valoração hegemônicos, de validade genérica, ditados pelo imperativo da mais rasteira eficácia econômica.

Sem uma educação libertadora, como Paulo Freire nos diz, que fomente o desenvolvimento da criticidade, da criatividade e da convivência na diversidade, a democracia acaba por se fragilizar e os saberes tradicionais, as artes e manifestações culturais específicas tornam-se voláteis. Atualmente o Brasil vive um momento histórico em que direitos humanos básicos, como o da livre expressão, estão ameaçados. Mas não podemos esquecer que todo evento histórico é coconstruído. Uma pessoa sozinha não faz uma revolução, não proclama uma guerra, não liberta uma nação, não impõe uma ditadura. Todas as nossas
ações individuais são socialmente construídas e, ao mesmo tempo, a deriva histórica de uma sociedade é realizada também por seus indivíduos. A educação está no centro desse contínuo sociedade-indivíduo: as escolhas coletivas e pessoais têm muito a ver com os valores e condutas propagados e incentivados na escola. A partir dessa compreensão, do incômodo diante da expansão de um modelo educacional conformista e homogeneizador, a Escola Vila propõe a pedagogia ecossistêmica.

Fundada em 1981 na cidade de Fortaleza, a Vila percebe-se como um sistema social enredado em outros, partindo da ideia de que não há sistema social neutro. Escolas convencionais que não se engajam de forma clara, propositiva, crítica e contextualizada, que possuem somente o objetivo de cumprir currículos disciplinares gradeados, trabalham, mesmo que de forma involuntária, para a manutenção de uma sociedade passiva, acrítica e amorfa. Contra essa corrente, a Escola Vila promove uma visão imbricada e consciente do papel do sistema social educativo como promotor da propagação de condutas, buscando o desenvolvimento da autonomia de pensamento, da criatividade e da convivência na diversidade. A transdisciplinaridade, o pensamento complexo e a visão sistêmica formam o arcabouço teórico da pedagogia ecossistêmica.

A transdisciplinaridade parte do entendimento de que há um currículo oculto para além do que as fronteiras disciplinares delimitam. Abre-nos à emergência de uma confluência entre os saberes das artes, das tradições e das ciências. Alerta-nos para o fato de que nenhuma cultura se encontra em um patamar privilegiado no qual possa autoproclamar-se “superior” a outra. A transdisciplinaridade ressalta a importância da corporeidade e do imaginário no currículo e na produção de conhecimento e questiona a hiperespecialização disciplinar.

O pensamento complexo implica uma abordagem que permite perceber as cegueiras do conhecimento. Sob o enfoque de uma visão sistêmica, a complexidade leva em consideração as relações entre o todo e suas partes, de forma a compreender que o todo pode ser, ao mesmo tempo, maior e menor que a soma das partes. É também a partir da complexidade que consideramos a circularidade, a recursividade, a dialogia e o princípio da auto-eco-organização na construção do conhecimento.

Contemplando essas abordagens, a Vila compromete-se, desde sua intenção original, a consolidar e propagar um modo de pensar, atuar e construir mundos compartilhados a partir das relações que produzimos com o meio ambiente, o meio social e como indivíduos. São muitos os aspectos em que nossa escola se diferencia das mais convencionais, por ter promovido uma mudança consciente em relação ao modelo de educação dominante.

Mas isso não ocorreu da noite para o dia; foi fruto de um longo processo. Uma busca especialmente desafiadora nos anos iniciais, já que, na época da fundação
da Vila, iniciativas desse tipo eram raras no Brasil. O currículo em grade foi enredeado em uma teia curricular complexa, que organiza todos os atos de currículo da escola a partir das relações que produzimos no mundo, compondo três eixos: cuidar do indivíduo; cuidar da natureza; cuidar do meio social.

A teia curricular da Vila apresenta três características principais: a atenção ao contexto e às realidades locais e globais; a atenção às teceduras entre diferentes conhecimentos; a dinâmica processual, recorrente e aberta à emergência dos atos de currículo da escola. A teia curricular procura religar saberes, transpondo e extrapolando disciplinas. Conquista os espaços em branco e legitima, em sua estrutura, os lugares do corpo, das emoções, das tradições, da arte, das relações interpessoais, intrapessoais e com a natureza. Procura novas linguagens e mecanismos de expressão de novas ideias, sentimentos, desejos e emoções. Propicia a aproximação entre ciências, artes e tradições, incorporando conteúdos que extravasam qualquer fronteira disciplinar.

A base metodológica da pedagogia ecossistêmica da Vila parte do constante trabalho em grupo, do trabalho com pesquisas e com projetos. Nas salas de aula, as cadeiras e mesas são sempre dispostas em grupos, de modo a facilitar a interação. Sempre que possível, o professor ou a professora propõe atividades ao grupo, e não aos alunos individualmente, favorecendo assim o desenvolvimento de habilidades sociais como cooperação, tolerância, comunicação e ajuda
mútua. No trabalho em grupo, os alunos encontram a possibilidade de evidenciar as diferenças e aprender a conviver com elas: distintos modos de resolver situações, de pensar, de se expressar, limitações e habilidades particulares, opiniões divergentes etc. Os professores tomam o cuidado de dispor os alunos em grupos semanais, de maneira que, ao longo de algumas semanas, todos tenham interagido entre si. Além disso, ao longo de sua história, a Vila foi organizando suas instalações em cenários transdisciplinares, à medida que consolidava seu espaço e desenvolvia, na prática, a pedagogia ecossistêmica. Hoje são oito laboratórios vivenciais, cinco espaços de expressão criativa, autoconhecimento e transformação, seis projetos socioambientais anuais, bem como outros espaços abertos de aprendizagem e salas temáticas, sempre se valendo do trabalho em grupos e do trabalho com projetos como uma constante em sua didática diária.

Os oito laboratórios vivenciais são ambientes de aprendizagem onde os conteúdos das diferentes disciplinas são contemplados a cada dia, de forma interligada e transdisciplinar, do Infantil 1 até o 9º ano do Ensino Fundamental. São eles: fauna, horta, farmácia viva, pomar, jardim, tecnologias alternativas, manutenção e saúde e alimentação. Em cada um, os grupos de alunos lidam concretamente com o tema em questão, conforme os eixos e cruzamentos da teia curricular.

“A criatividade incomoda e ameaça, pois é a partir dela que podemos gerar e propagar transformações sociais.”

O cuidado com a natureza, por exemplo, é incentivado no convívio com fauna e flora, de modo a desenvolver a relação afetiva com animais e plantas e, ao mesmo tempo, a capacidade de observação, as habilidades de cultivo e a criação de ambientes agradáveis. No laboratório de farmácia viva, os alunos são incentivados a valorizar a medicina tradicional no cultivo de diversas ervas da farmacopeia popular, trabalhando também, num mesmo cenário, o cuidado com o meio social e o indivíduo. Outro exemplo especial de transdisciplinaridade é o laboratório de tecnologias alternativas, onde os estudantes constroem equipamentos e pequenas edificações que contemplem em sua concepção a ideia de sustentabilidade e ecodesign, como captação A criatividade incomoda
e ameaça, pois é a partir dela que podemos gerar e propagar transformações sociais.

de energia solar para aquecimento de água, captação e utilização da água pluvial, reciclagem e reutilização de papéis e sucata. As cinco aulas integradas nos espaços de criação, expressão, autoconhecimento e transformação também são diárias e abrangem artes plásticas, artesanato, teatro, música e corpo. Nelas o aluno aprende diversas técnicas em cada campo com o objetivo maior de explorar linguagens para a expressão concreta de conteúdos internos, como emoções, pensamentos, opiniões, impressões.

A pedagogia ecossistêmica, que atualmente alcança outros sistemas educacionais além da Escola Vila, considera que o exercício que mais nos aproxima da liberdade é a diversidade criativa, o pensamento e as ações criativas individuais, a apropriação do processo criativo, multidimensional e implicado socialmente na coconstrução de mundos de forma propositiva. O ser humano só existe num contexto de sistemas sociais, num verdadeiro ecossistema social. Talvez o primeiro passo para o exercício da criatividade livre e libertadora é perceber-se limitado. É reconhecer nossa condição irremediável de codependência e, ao mesmo tempo, perceber que essa limitação é a chave para a promoção criativa de liberdades.

A criatividade incomoda e ameaça, pois é a partir dela que podemos gerar e propagar transformações sociais. Quando tomamos consciência de que criamos mundos compartilhados, podemos muito. Criamos nossos mundos a todo momento, a cada validação que promovemos na interação com os demais. A criatividade e a autonomia são grandes promotoras de transformações sociais. Essa visão ecossistêmica, na qual contemplamos e reconhecemos as realidades
possíveis como produtos e projeções construídas individualmente e compartilhadas e validadas socialmente, em um incessante processo simbiótico de coconstrução, pode possibilitar o exercício da livre reflexão, crítica e criativa. E esse é o objetivo maior do trabalho da Escola Vila.

Texto: Patrícia Limaverde